quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Arroubos de sabedoria














Por Marta Baião

O dia estava findando, e dona Letícia,82 de existência,observava sentada da porta de sua casa, o movimento caótico das pessoas retornando aos seus lares.A senilidade trouxe, além do enfraquecimento físico, a carência de pensamentos minimamente lógicos,ainda que momentos de lucidez se dessem de forma esporádica.E era o sentimendo de nostalgia aguda que proporcionava esses lampejos de coerência reflexiva.

Naquele final de tarde do mês de setembro,dona Letícia foi tomada por uma saudade mórbida do seu amado,seu Dionísio,há 10 anos ausente, após a visita da 'indesejada das gentes',como dizia Manuel Bandeira.Fadada a uma vida reclusa e solitária depois da morte do esposo,passou a viver uma espécie de ostracismo domiciliar.Visitas eram parcas,uma vez que possuia poucos parentes residentes na cidade.

A única pessoa que se dispunha a visitá-la diariamente era Evilásio,estudante universitário,recém chegado na cidade,a quem o fato de morar nas proximadades do monumental casarão de dona Letícia causava-lhe grande encatamento.O jovem era um apaixonado por relíquias,por tudo que trouxesse ou o rementesse à tempos pretéritos,mesmo que trazendo apenas pequenas reminiscências históricas.Assim,a anacoreta senhora surgia como uma memória viva a ser desvendada.

Há 5 meses as visitas de Evilásio se davam de forma quase initerrupta.E aquele prelúdio noturno reservava surpreendentes revelações.Ele se aproxima da rua em que ambos moravam,logo avista dona Letícia elegantemente sentada observando o vai-e-vem de carros e pessoas.O olhar denotava uma tristeza acentuada mais do que de costume.Então,com entusiasmo juvenil,ele tentou abordá-la de maneira a descontraí-la:

— A noite mal desponta e a senhora se encontra bela como a quem vai ao mais badalado evento do ano?A que se deve tamanho embelezamento?

Um leve sorriso contido brota de sua face,sorriso esse que contrastava com o diálogo que se seguiria por mais ou menos 2 horas.Com a voz já trêmula,ela disse:

— É impossível haver qualquer tipo de beleza na melancolia.Somente pretensos poetas de boteco conseguem enxergar o belo,enquanto o coração está tomado pela angustia de se viver sozinho.

Seguiu-se segundos de puro silêncio.Não aquele silêncio incômodo,mas um silenciar necessário quando se quer proferir algo que conforte uma alma inquieta.Os 5 meses de convivência deu a Evilásio uma certa idoneidade para discernir quando era oportuno estebelecer uma conversa de cunho emocional com sua adorável vizinha.E aquele era um desses dias.

Dona Letícia tomada pela nostalgia era sinônimo de encadeamento de sentenças morais e emocionais eivadas de sabedoria.Aquela sabedoria que não se adquire em livros ou centros acadêmicos,mas aquela que se processa na luta incessante contra as vicissitudes impostas pela vida.

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